quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O BÊBADO E O RAMALHETE

Era um dia igual a outro qualquer. Ele acordou; porta fechada e uma bailarina de pluma dançava com o vento pendurada na chave. Foi até a janela, sepultou o olhar por um instante na tarde que morria...Pensou no filho que não tinha, talvez se tivesse amado se equilibraria na igualdade do amor verdadeiro Ter um filho com toda a bagagem do agora? Uma garrafa, um copo e uma noite sombria pra ser absorvida em longos goles... Fechou os olhos foi até a infância, único exílio onde gostava de voltar sempre. Lembrou da algazarra dos meninos, a briga pelo resto de doce no tacho, o barco que entrava água,o pêssego verde com sal devorado no beiral do telhado. Tinha coisas boas dentro dele, ninguém sabia... Um resto de juventude nessa hora desenhava seu rosto. Tirou debaixo do travesseiro o adeus do último amigo. Mexeu no meio da livralhada, soletrou um verso que falava de um fazer de conta danado que vivia, acreditava talvez... Recordava uma música de piano que vinha não sei de onde misturada ao cheiro de vários jantares por onde passava quando voltava da escola. Por um instante conferiu o desenho das mãos, nenhum caminho... um barco de papel desancorando pro nada. Quem entenderia sua náusea pela vida? Aquele engasgar de palavras doces que sabia dizer e nunca pôde presas açucarando na garganta? Sorriu. O vôo de um pombo agora pousava na sua memória. Ah! Seu cão cor de terra que nunca o abandonara e abria-lhe o portão só de olhar. A ave- Maria das 6 em ponto, o sino da igreja que mais parecia um túnel onde se perdiam pessoas; de um Deus bêbado de vinho e desleixado assim feito ele. Mais um copo, um copo mágico que tinha o poder de leva-lo para um longe. Era bonito, sofrido. Um dia numa festa um menino o tirou pra dançar; girou tanto e tanto sem perceber que aquele menino era ele mesmo sem nunca ter crescido. Na cadeira rasgada e cheirando a fumo, sentou-se. Tudo rodava, então veio a solidão dos albergues, a comida azeda esquecida na mesa, a insônia dos embriagados; e num gesto, escancarou os braços acolhendo todos que se perderam como ele. Já era muito noite. Saiu lá fora, dançou a valsa de Amelie Poulain, tirou do bolso a algazarra dos meninos, o doce do tacho, o vôo do pombo, o pão que ainda não havia amanhecido e o olhar precipício do seu cão onde se arremessava sem medo algum se escondendo do mundo. Juntou tudo, fez um amarrilho com os dedos e espalhou na escuridão daquela hora. Olhou a porta, estava aberta. A bailarina ainda dançava na chave. Ir? Pra quem? Num ímpeto, deteu o vôo do cão, calou o latido do pombo, encostou as luzes, apagou a porta.Tinha virado uma estrela; torta.

KALÍOPPE


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